Émile Durkheim - Formas Elementares da Vida Religiosa: Definição do Fenômeno Religioso e da Religião.
DURKHEIM, Émile. Formas Elementares da Vida Religiosa.
Capítulo 1 – Definição do Fenômeno Religioso e da Religião. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
O capítulo Definição do Fenômeno
Religioso e da Religião, presente na obra Formas Elementares da Vida Religiosa,
de Émile Durkheim, busca demonstrar o que pode ser chamado de religião e busca
entender o que é o fenômeno religioso. O autor, já no início, nos expressa uma
ideia de que, se quisermos saber qual a religião mais simples e primitiva, é
preciso definir o que vem a ser religião para que não corrêssemos risco de
chamar de religião um sistema de ideias e de práticas que nada teria de religioso,
ou deixar de lado certos fatos religiosos sem que conseguíssemos perceber sua
natureza verdadeira. O pensador, ainda nesse âmbito de identificação sobre o
que é religioso ou não, aponta que Frazer não soube reconhecer o caráter
religioso profundo das crenças e dos ritos que são estudados posteriormente na
obra. E o famoso antropólogo evolucionista não soube assumir esse caráter
religioso justamente por não ter tomado a precaução da definição do fenômeno
religioso. Mas aí abriga uma questão importante que pode ter gerado o erro de
Frazer e de vários outros estudiosos da religião naquela época: não se pode
pensar em alcançar as características íntimas e verdadeiramente explicativas da
religião, pois isso só pode ser concretamente determinado ao fim da pesquisa.
Contudo, é possível e fundamental indicar uma certa quantidade de sinais
exteriores, de fácil percepção, que concedem reconhecimento dos fenômenos
religiosos onde quer que se encontrem, e que bloqueia que nós confundamos com
outros (e é essa operação que o autor vai proceder ao longo do capítulo e da
obra).
Entretanto, o
sociólogo/antropólogo francês nos alerta que devemos nos libertar de todas as
noções pré-concebidas sobre a questão religiosa para que a pesquisa dê
resultados. Durkheim ressalta que os homens foram obrigados a criar para si uma
ideia do que é religião, antes mesmo que a ciência da religião pudesse
instituir comparações metódicas. As necessidades que a existência nos causa
obrigam a todos nós, crentes e ímpios, a representar de alguma forma as coisas
no meio das quais nós vivemos, sobre as quais a todo momento emanamos juízos e
que necessitamos levar em conta em nossa conduta. Contudo, aponta Durkheim,
como essas pré-noções nascem sem algum tipo de método, por meio de acasos e
circunstâncias derivadas da vida, elas não possuem direito a ter algum crédito
nas análises e devem ser mantidas o mais longe possível dos estudos presentes
na obra. Segundo uma impactante frase do sociólogo: “Não é a nossos
preconceitos, a nossas paixões, a nossos hábitos que devem ser solicitados os
elementos da definição que necessitamos; é a realidade mesma que se trata de
definir.” (DURKHEIM, 1996, p. 4)
Portanto, sugere o teórico
francês, deixemos de lado todas as noções de religião em geral e consideremos
as religiões em realidade concreta e procuremos explanar o que essas podem ter
em comum, pois a religião só pode ser definida em função das características
que são encontradas por toda parte onde houver religião. Durkheim, portanto,
introduz essa comparação em todos os sistemas religiosos que podemos conhecer,
nas do presente e nas do passado, nas mais simples e primitivas até as mais
recentes e refinadas, pois não há nenhum direito e nenhum meio lógico e
racional que permite a exclusão de uns para reter outros. Durkheim aponta no
texto que para aquele que vê na religião um tipo de manifestação natural da
atividade humana, todas essas religiões são instrutivas, sem exceção, pois
todas essas religiões exprimem o homem à sua maneira e podem ajudar a
compreender de forma melhor esse aspecto da natureza. Entretanto, ressalta o
autor, que para ajudar o espírito a se libertar-se dessas concepções usuais
que, por prestígio, podem impedir o sujeito de ver as coisas tais como elas
são, convém examinar algumas definições mais correntes nas quais esses
preconceitos vieram a serem emanados.
Logo após essa introdução do
capítulo, Durkheim parte para o item I. Neste item, o autor se dispõe a começar
examinar algumas definições que formulam os preconceitos dos indivíduos em relação
aos significados de religião e do fenômeno religioso. O primeiro preconceito
que Durkheim busca desconstruir é a noção de que tudo que é religioso possui
característica sobrenatural. No caso, o sobrenatural é entendido como toda
ordem de coisas que ultrapassa o alcance de nosso entendimento. Com essa noção
impregnada, religião seria um tipo de especulação de tudo aquilo que escapa à
ciência ou, de maneira mais generalizada, do pensamento claro.
Um dos fatos destacados como
importante em certas religiões, mas que variou em diferentes momentos da
história, foi o sentimento de mistério em certas religiões, principalmente na
cristã. Este fator nem sempre foi protagonista, chegando até mesmo a se apagar
em certos momentos. O autor nos demonstra o exemplo do século XVII onde, para
os homens que nesse século viveram, ciência, filosofia e fé se conciliavam sem
muitas dificuldades, e teóricos/pensadores que sentiam intensamente o que havia
de profundamente obscuro nas coisas (é citado, no texto, o exemplo de Blaise
Pascal), estavam pouco harmoniosos com sua época que continuaram por muito
incompreendidos por seus contemporâneos. Por isso seria equivocado/precipitado,
na visão durkheimiana, fazer dessa ideia um elemento necessário ainda que
apenas da religião cristã.
Logo após essa abordagem do
mistério presente no cristianismo, Durkheim aponta em um viés mais histórico
que essa noção de mistério apareceu tardiamente na história das religiões,
sendo totalmente estranha aos povos primitivos e àqueles que não atingiram
certo nível de cultura.
Contudo, não desviando a atenção
sobre o aspecto do sobrenatural, o francês explicita que a ideia de
sobrenatural é antiga e essa noção supõe a ideia contrária, de negação de que
nada há de primitiva. Com sua didática, característica destacada, Durkheim argumenta
que, para que se pudesse dizer que algum fato é sobrenatural, era necessário
ter o sentimento que já existisse uma ordem natural das coisas ou, melhor
dizendo, que os fenômenos do universo estivessem ligados entre si segundo
relações denominadas “leis”. Uma vez que isso fosse adquirido, tudo aquilo que
infringisse essas leis deveria se mostrar como exterior a natureza e à razão,
pois o que é natural é também racional nessa lógica.
Percorrendo um pouco mais pelo
texto, mas ainda dentro do raciocínio do “sobrenatural”, o autor nos descreve
que essa noção do determinismo universal era recente (pelo menos em sua época)
e que essa noção é uma conquista das ciências positivas, sendo o postulado onde
repousam e que elas demonstraram por seus progressos. Entretanto, enquanto não
se sabia o que a ordem de todas as coisas possuía de imutável, enquanto
enxergavam obras de vontades incontingentes, achava-se natural que essas
vontades ou outras pudessem modificar essas ordens. Por isso, argumenta o
francês, que as intervenções miraculosas que os antigos atribuíam aos deuses ou
outras divindades não eram, no entender deles mesmos, milagres, levando em
consideração o sentido moderno da palavra. Os antigos viam essas intervenções
como espetáculos belos, terríveis ou raros, objetivos de maravilhamento ou de
surpresa; entretanto, de maneira alguma enxergavam como porta de acesso a um
mundo de mistérios que a razão nunca poderia penetrar.
Durkheim ainda discorre sobre a
questão do determinismo em parágrafos posteriores. Se esse princípio está
estabelecido solidamente na nas ciências físicas e naturais, fazia somente um
século em que este mesmo princípio começou a ser introduzido nas ciências
sociais (importante ressaltar que o autor discorre sobre a questão temporal
levando em conta sua época). Apenas uma pequena parte da população estava
convencida da ideia de que todas as sociedades estavam submetidas a leis
necessárias e que esses espíritos (espíritos pois o autor diz essa palavra ao
invés de pessoas ou população, como usado anteriormente) constituíam um reino
natural. Portanto, daí se origina a crença de que nessas sociedades sejam
possíveis acontecimentos de possíveis milagres. O sociólogo nos dá o exemplo do
legislador que cria uma instituição do nada por simples ordem formal de sua
vontade, transformar um sistema social em outro, da mesma maneira que os
crentes de diversas e variadas religiões admitem que o mundo foi criado pela
vontade divina ou nada pode transmutar – sem ordem – os seres um nos outros.
Contudo, afirma Durkheim, no que tange aos fatos sociais, temos uma mentalidade
de primitivos. Entretanto, se em matéria de sociologia, vários contemporâneos
de sua época apegavam-se a essa concepção, não era que a vida das sociedades
parecia para eles obscura e misteriosa; muito pelo contrário, se esses se
contentavam de maneira fácil com tais explicações, se se agarravam de maneira
firme nessas ilusões que a experiência desmentia de maneira incessante, é que
os fatos sociais lhes pareciam a coisa mais clara e óbvia do mundo; isso se
dava pelo fato de não perceberem sua obscuridade real. A realidade é que esses
não recorreram aos procedimentos das ciências sociais para se dissiparem
progressivamente das trevas deste fato social. Este mesmo estado de espírito
que é encontrado na raiz de várias crenças religiosas que surpreendem de tão
simples que são. E o autor conclui com a seguinte frase: “Foi a ciência, e não
a religião, que ensinou aos homens que as coisas são complexas e difíceis de
compreender.” (DURKHEIM, 1996, p. 9)
Ainda nesse âmbito do
sobrenatural, Durkheim nos explica – usando Jevons como referência – que o
espírito humano não possui nenhuma necessidade de uma cultura propriamente
científica para perceber que há entre os fatos sequências determinadas, uma
continuada e constante ordem de sucessão, e para perceber, por outro ponto de
vista, que essa ordem é frequentemente perturbada ou incomodada. Com sua forma
de escrever bastante didática e metódica, o autor nos dá os exemplos do sol em
eclipse, da falta de chuva em época em que se espera muita chuva etc. E é
conclui que é sobre essa forma que se constituiu a ideia de sobrenatural desde
o início da história, e foi assim que o pensamento religioso se viu completo de
seu objeto próprio.
Mas não podemos reduzir a noção
de sobrenatural a imprevistos, como diz o autor, pois as coisas novas e
inesperadas fazem parte da natureza. Portanto, se é constatado que, geralmente,
os fenômenos se sucedem em ordem determinada, é possível observar de forma
igual que essa ordem é sempre aproximada, não idêntica por duas vezes seguidas
e comporta todo tipo de exceções. Novamente Durkheim nos exemplifica essa
situação de uma maneira didática demonstrando que estamos habituados à
frustração frequente de nossas expectativas e essas decepções retornam seguidas
vezes para que nós as vejamos como excepcionais ou extraordinárias. Logo, para
que tenhamos a noção de sobrenatural, não é categórico que sejamos testemunhas
de acontecimentos inesperados; é necessário que, além disso, estes
acontecimentos sejam considerados como impossíveis e nada conciliáveis com uma
ordem que, independente de certa ou errada, nos parece enredada na natureza das
coisas. Além de tudo, essa noção de uma ordem necessária/precisa foram as
ciências positivas que, de pouco em pouco, construíram. Portanto, a noção
contrária não poderia lhes ser a antecessora.
E já concluindo o item I,
Durkheim afirma que, seja como for que os homens buscaram representar as
novidades e as contingências reveladas a posteriori, não há nada nisso
que possa servir para caracterizar a religião. Mas por quê? O sociólogo explica
que as concepções religiosas têm por objeto, acima de tudo, exprimir e
explicar, não o que há de excepcional e não normal nas coisas, mas, ao
contrário, o que elas possuem de constante e de regular. Quase que sempre, os
deuses servem menos para explicar monstruosidades, extravagâncias e anomalias
do que a marcha habitual do universo, do movimento dos astros, ritmo das
estações etc. Logo, a noção do religioso está longe de coincidir com a do
extraordinário e do imprevisto. Além disso, a ideia do mistério – mostrada
anteriormente – nada possui de original. Afirma Durkheim que ela não foi dada
ao homem, mas forjada pelo próprio ao mesmo tempo em que ele concebia a ideia
contrária. Por esta razão que esta noção só ocorre em uma pequena parcela de
religiões avançadas. Portanto, conclui o antropólogo, não se pode fazer dela a
característica dos fenômenos religiosos sem excluir da definição a maioria dos
fatos que ainda hão de ser definidos.
Já no item II, o autor busca
rebater outra noção que buscou, também, definir a religião: divindade. Durkheim
usa a citação de Réville, onde o mesmo diz: “A religião é a determinação da
vida humana pelo sentimento de um vínculo que une o espírito humano ao espírito
misterioso no qual reconhece a dominação sobre o mundo e sobre si mesmo, e ao
qual ele quer sentir-se unido.” (RÉVILLE, apud DURKHEIM, 1996, p. 11).
Logo, se entendemos a palavra divindade em um sentido exato e estrito, a
definição deixa no exterior grande parte de fatos manifestamente religiosos,
afirma o pensador francês. Levando em conta as almas dos mortos, os espíritos de toda
espécie e de toda ordem, com que a imaginação religiosa de variados povos
povoou a natureza, são sempre objeto de ritos e, algumas vezes, até de um culto
regular; entretanto, não se trata de deuses propriamente ditos. Contudo, para
que a definição os compreenda, basta mudar a palavra deus para de ser
espiritual, o que é mais abrangente – e foi isso que Tylor fez. Contudo,
devemos entender por seres espirituais sujeitos conscientes, dotados de poderes
superiores aos que possui os homens comuns. Além disso, essa qualificação
convém às almas dos mortos, gênios, demônios, tanto quanto às divindades
propriamente ditas. Já que a religião teria por objeto regular nossas relações
com esses seres, só poderia haver religião onde houvessem preces, sacrifícios,
ritos propiciatórios etc. Assim, teríamos um simples critério para definir o
que é e o que não é religioso, e é a esse critério que se referenciou Frazer e
outros.
Entretanto, Durkheim explica que
por mais claro que possa parecer essa definição, há muitos fatos aos quais ela
não é aplicável e que, no entanto, dizem respeito ao domínio da religião. Isso
se dá por consequência de hábitos de espíritos que devemos à nossa educação
religiosa.
Primeiramente, existem religiões
de grande porte em que a ideia de deuses e espíritos não está presente, nessas
quais, pelo menos, ela desempenha um papel secundário e ofuscado. O antropólogo
irá dar o exemplo do budismo. O budismo se apresenta como uma moral sem deus e
um ateísmo sem natureza, apresenta Durkheim com base em Burnouf. Portanto,
conclui o autor que, de fato, o essencial do budismo consiste em quatro
proposições chamadas de “as quatro nobres verdades.”
A primeira põe a existência da
dor como ligada ao constante fluxo das coisas; já a segunda mostra a causa da
dor no desejo; a terceira mostra que o único jeito de suprimir o desejo é
suprimindo a dor; a quarta faz uma enumeração das etapas que são necessárias
passar para chegar a supressão: retidão, a meditação e a sabedoria. Passadas
essas três etapas, chega-se no final do caminho, à libertação, à salvação pelo
Nirvana.
Mas se percebermos bem, não está
envolvida a divindade nesses princípios. O budista não se preocupa em saber de
onde vem esse mundo do devir onde ele vive e sofre; toma-o como um fato e se
esforça totalmente com a finalidade de partir dele. Entretanto, em outra
perspectiva, ele só conta consigo mesmo para essa salvação; não há nenhum deus
para agradecer ou chamar em um combate para auxiliá-lo. Em vez de rezar e em
vez de voltar-se para um ser superior, ele concentra-se em si mesmo e medita.
Mas isso não significa, claro, que ele negue a existência de seres como Indra,
Agni e Varuna, mas ele julga que nada lhes deve e que não precisa deles, pois o
poder destes só se estende sobre os bens deste mundo que, para o budista, não
possuem valor.
Contudo, não se pode negar,
também, que em certas divisões da Igreja Budista, o Buda se tornou uma espécie
de deus. Possui seus templos e tornou-se objeto de culto, não passando muito
mais do que um culto da lembrança. Mas esse processo de divinização do buda é
particular ao budismo setentrional. É certo que atribuíram ao Buda poderes
superiores aos que possui o homem comum; todavia, era uma crença demasiada
antiga na Índia e muito comum em uma série de religiões variadas, onde um
grande santo é dotado de virtudes fora do normal; no entanto, um santo não é um
deus. Mas de outra maneira enxergam teóricos e estudiosos mais autorizados,
onde esses afirmam que essa espécie de teísmo e mitologia complexa que costumam
acompanhá-lo não seriam senão uma forma derivada e desviada do budismo, pois
pelo que se sabe, Buda teria sido concebido apenas como “o mais sábio dos
homens”. Em todo caso, afirma Durkheim, seria ele um deus de uma natureza
bastante peculiar cujo papel não se assemelha com os das outras personalidades
divinas, porque um deus é um ser cujo o homem deve e pode contar; no entanto,
Buda morreu, entrou no Nirvana e nada mais pode sobre a marcha dos
acontecimentos humanos.
Então, o que há de essencial no
budismo? O teórico francês nos demonstra que o budismo consiste, antes de tudo
na noção de salvação, e a salvação supõe unicamente que se conheça e pratique a
boa doutrina Obviamente, ela não seria conhecida se Buda não tivesse vindo
revelá-la; porém, uma vez que essa revelação foi feita, a obra de Buda estava
cumprida. A partir daí, ele deixou de ser um fator necessário da vida
religiosa. Essa prática das quatro verdades sagradas seria possível mesmo que a
lembrança daquele que as fez conhecer se apagasse das memórias. Isso é
extremamente diferente no cristianismo, visto que, sem a ideia sempre presente
e o culto sempre praticado de Cristo, é inconcebível; pois é por Cristo sempre
vivo e a cada dia imolado que os fiéis continuam a comunicar-se com a fonte
suprema da vida espiritual, afirma o antropólogo francês.
Logo após essa análise do
budismo, Durkheim parte para o jainismo, que é uma grande religião na Índia. As
doutrinas jainistas e budistas possuem a mesma concepção de mundo e vida. Da
mesma forma que os budistas do Norte, os jainistas, ou pelo menos alguns
desses, se voltaram a uma espécie de deísmo; nas inscrições presentes no Decão,
fala-se de um Jinapati, um tipo de Jaina supremo, que é chamado de primeiro
criador, mas essa linguagem está em contradição com as declarações mais
explícitas de seus escritores mais autorizados.
Aliás, se essa indiferença pelo
divino se desenvolveu a tal ponto no budismo e no jainismo, é que esta já
estava presente em germe no bramanismo, do qual ambas as religiões se derivaram,
de acordo com Durkheim. Pelo menos em algumas de suas formas, o bramanismo
possuía uma especulação de explicação francamente materialista e atéia do
universo. Ao longo do tempo, as diversas divindades que os indianos adoravam
acabaram que se fundindo numa espécie de tudo o que existe. Essa realidade com
ar de suprema, que nada mais possui de uma personalidade divina, o homem contém
em si, ou de maneira melhor, identifica-se com ela, uma vez que nada existe
fora dela. Para encontrar essa realidade e unir-se a ela, o homem não precisa
buscar fora de si mesmo nenhum apoio exterior, pois basta concentrar-se em si e
meditar. Eis nessas, afirma Durkheim, uma porção considerável da evolução
religiosa que consistiu em um recuo progressivo da noção de divindade e ser
espiritual. Eis também, aí, grandes religiões em que as invocações,
propiciações, sacrifícios, preces etc estão demasiadamente longe de ter uma
posição preponderante e não apresentam sinal distintivo no qual se pretende
reconhecer as manifestações propriamente religiosas.
No entanto, o antropólogo
francês busca nos mostrar que, mesmo no interior de religiões deístas, é
possível encontrar um grande número de ritos que são completamente
independentes de toda noção de seres espirituais ou de deus. Contudo, antes de
mais nada, há uma série de interdições. O exemplo dado por Durkheim é o da
Bíblia, onde essa ordena à mulher viver em isolamento todo mês durante um
período determinado; obriga-se a um isolamento análogo durante o parto; proíbe
atrelar juntos o jumento e o cavalo, usar um vestuário onde o cânhamo se
misture com o linho, sem que seja possível perceber que papel a crença em Jeová
pode ter desempenhado nessas citadas interdições; isso pois ele está ausente de
todas as relações assim proibidas e não poderia estar interessado por elas.
Claro que esses ritos são profundamente negativos, mas não deixam de ser
religiosos.
Portanto, no fim do item II,
Durkheim conclui que há ritos sem deuses e há ritos dos quais derivam os
deuses. Nem todas as virtudes religiosas exprimem de personalidades divinas, e
há certas relações culturais que visam outra coisa que não unir divindade e
homem. Logo, Durkheim diz a seguinte frase: “Portanto, a religião vai além da
ideia de deuses ou de espíritos, logo não pode se definir exclusivamente em
função desta última.” (DURKHEIM, 1996, p. 18)
Finalizado o assunto sobre a
questão da divindade, Durkheim inicia o item III de seu capítulo. Neste item, o teórico vai se colocar diante do problema e inicia esta parte do capítulo com
algumas considerações.
Primeiramente, afirma o teórico
francês, observamos que, em todas essas fórmulas vistas anteriormente, é a
natureza da religião em seu conjunto que se tenta exprimir diretamente. A ideia
que procede é de que a religião formasse uma espécie de todo indivisível,
porém, esta que é realmente um todo formado por partes; é um sistema meio
complexo de mitos, dogmas, ritos e cerimoniais. O autor nos explica que um todo
não pode ser definido senão em relação às partes que o constituem. Portanto, é
mais metódico procurar caracterizar os fenômenos elementares dos quais resultam
todas as religiões, antes do sistema produzido por sua união. Logo após, o
autor busca mostrar, rapidamente, sobre o folclore, que são fenômenos
religiosos que não dizem respeito a nenhuma religião determinada.
Já caminhando um pouco mais pelo
item, Durkheim nos afirma que os fenômenos religiosos se classificam
naturalmente em duas categorias fundamentais: as crenças e os ritos. As crenças
são estados de opinião, consistem em representações; os ritos são modos de ação
determinados. E entre esses dois tipos de fatos há exatamente a diferença que separa
o pensamento do movimento.
Os ritos só são definidos e
distinguidos de outras práticas humanas pela natureza especial de seu objeto.
Logo, uma regra moral, do mesmo modo que um rito, nos prescreve maneiras de
agir, mas que se dirigem a objetos diferentes. Logo, é o objeto do rito que
precisaríamos caracterizar para podermos caracterizar o próprio rito.
Entretanto, é na crença que a natureza especial desse objeto se exprime. Deste
modo, só se pode definir o rito após a definição da crença.
Todas as crenças religiosas
apresentam o mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou
ideias, que os homens concebem, em duas classes, em dois gêneros opostos,
designados geralmente por dois termos distintos que as palavras sagrado e
profano traduzem bastante bem. Essa divisão do mundo em dois domínios,
explica Durkheim, que compreendem, um, tudo o que é sagrado, outro, tudo o que
é profano, tal é o traço do pensamento religioso: as crenças, mitos, gnomos e
lendas são representações ou sistemas de representações que emanam a natureza
das coisas sagradas, virtudes e os poderes que lhes são atribuídos, sua
história, suas relações mútuas e com as coisas profanas. Entretanto, o pensador
nos ensina que o sagrado não é somente deuses ou espíritos: uma árvore, um
rochedo, uma fonte, seixo, pedaço de maneira, uma palavra etc. pode ser
sagrada. Até mesmo um rito pode ter esse caráter. Eis aí o motivo do budismo
ser uma religião: na falta de deuses, ele admite a existência de coisas
sagradas, que são as quatro verdades santas e as práticas que derivam delas.
Mas de que características
gerais as coisas sagradas se distinguem das profanas? Antes de mostrar as
características, Durkheim faz uma série de considerações sobre essa questão. A
principal delas é a questão sobre a hierarquização das coisas; não é que uma
coisa está acima do homem que ela é sagrada; há modelos de elementos sagrados
que não são nessa forma de hierarquia. Os escravos dependem de seus senhores,
os súditos de seu rei e nem por isso estes acima são sagrados para os que
abaixo estão. Nessa perspectiva, Durkheim nos exemplifica que há coisas
sagradas de todo tipo e há aquelas diante das quais o homem se sente
relativamente à vontade. Um amuleto pode ter um caráter sagrado, no entanto o
respeito que inspira nada tem de excepcional. Mesmo diante de seus deuses
adorados, o homem nem sempre se encontra em uma posição de acentuada
inferioridade, pois muitas vezes exerce sobre eles uma verdadeira coerção
física para obter o que deseja. Também os deuses tem necessidade do homem: sem
as oferendas e os sacrifícios, eles morreriam.
Contudo, Durkheim nos mostra
que, se a hierarquia é um critério ao mesmo tempo muito geral e muito impreciso,
nada nos resta para definir o sagrado em relação ao profano senão a sua
heterogeneidade. Além de tudo, o que torna essa heterogeneidade suficiente para
caracterizar semelhante classificação das coisas e distingui-la de qualquer
outra é justamente o fato dela ser demasiadamente particular: ela é absoluta,
na concepção de Durkheim. Para o teórico, não existe oposição de categorias de
coisas tão radicais profundamente; a oposição tradicional entre bem e mal não é
nada perto desta oposição entre sagrado e profano, pois o bem e o mal são duas
espécies contrárias de um mesmo gênero, a moral. E conforme as religiões, essa
oposição foi concebida de maneiras diferentes. Em uma, para separar os dois
tipos, pareceu suficiente localizá-las em regiões distintas do universo físico;
em outra, algumas delas são lançadas num meio ideal e transcendente, enquanto o
mundo material é entregue às outras em plena propriedade. Entretanto, se as
formas do contraste são variáveis, o fato mesmo do contraste é universal.
Contudo, isso não significa que
um ser jamais possa passar de um desses mundos para o outro; mas a maneira como
essa passagem é produzida, quando acontece, coloca em evidência a dualidade
essencial dos dois reinos. Este é o papel do rito de iniciação: você tira a
pessoa do mundo profano e a introduz no círculo sagrado. Diz-se que neste
momento a pessoa morre, que a pessoa determinada que ele era cessa de existir e
que uma outra, instantaneamente, substitui a precedente. Ele renasce sobre uma
nova forma. Durkheim ainda nos coloca de frente pra uma questão importante: “Não
é isso uma prova de que há solução de continuidade entre o ser profano que ele era
o ser religioso em que se toma?” (DURKHEIM, 1996, p. 23)
Essa heterogeneidade é tal que
não raro degenera num verdadeiro antagonismo. Estes dois mundos, como descreve
Durkheim, não são apenas concebidos como separados, mas como hostis e rivais um
do outro. Como o indivíduo só pode pertencer plenamente a um se tiver saído de
forma inteira do outro, o homem é exortado a retirar-se totalmente do profano,
para levar uma vida totalmente religiosa. Dessa observação que percebemos a
vida monástica que, ao lado e fora do meio natural onde vive o comum, organiza artificialmente
um outro meio, fechado ao primeiro e que quase sempre tende a ser o seu oposto.
Daí que vem o ascetismo místico, cujo o objeto é extirpar do homem tudo o que
nele pode permanecer de apego ao mundo profano. Então, observemos também todas
as formas de suicídio religioso, coroamento lógico desse ascetismo.
Logo após, Durkheim nos mostra
que o característico do fenômeno religioso é que ele supõe sempre uma visão
bipartida do universo conhecido e conhecível em dois gêneros que compreendem
tudo o que existe, mas que se excluem radicalmente. Posterior a isso, Durkheim
explica que as crenças religiosas são representações que emanam a natureza das
coisas sagradas e as relações que elas mantêm, seja entre seu, seja com as
coisas profanas. E os ritos são regras de conduta que prescrevem como o homem
deve comportar-se com as coisas sagradas.
Mas, caminhando um pouco mais para
frente, o autor francês nos diz que a religião não se reduz somente a um culto
único, mas consiste em um sistema de cultos dotados de certa autonomia. Essa
autonomia, por sinal, varia. Algumas vezes, os cultos são hierarquizados e subordinados
a um culto predominante, no qual acabam por ser absorvidos, mas ocorre também
estarem simplesmente justapostos e confederados. Nesse viés, Durkheim antecede
que a religião que o mesmo estudará na obra fornecerá um exemplo desta última
organização.
Simultaneamente, Émile Durkheim
explica que pode haver grupos de fenômenos religiosos que não pertencem a
nenhuma religião constituída: é que eles não estão ou não mais estão integrados
num sistema religiosos. Se algum desses cultos conseguir manter-se por razões
especiais enquanto o conjunto do qual fazia parte desaparece, ele irá sobreviver
apenas no estado desintegrado. Em certos casos, não é sequer um culto, mas uma
simples cerimônia, um rito particular que persiste sob essa forma.
Por mais que essa definição seja
preliminar, o pensador crê que ela já permite entrever em que termos se deve
colocar o problema que domina necessariamente a ciência das religiões. Quando
se crê que os seres sagrados só se distinguem dos demais por possuírem poderes
mais intensos dos que foram lhes atribuídos, a questão de saber de que forma os
homens puderam ter a ideia desses seres é demasiada simples: basta analisar
quais as forças que, por sua energia excepcional, foram capazes de impressionar
o espírito humano de forma tão visível para inspirar sentimentos religiosos. Contudo,
as coisas sagradas são diferentes em natureza das coisas profanas, se são de
uma outra essência, o problema é de uma natureza mais complexa. Pois é preciso
perguntar então o que levou o homem, o ser racional, a ver no mundo uma divisão
que resulta em dois mundos heterogêneos e incomparáveis, quando nada na experiência
a posteriori parecia dever sugerir-lhe a ideia de uma dualidade tão
radical.
Desta maneira, partimos para o quarto
e último item do capítulo de Durkheim. O autor declara que essa definição (debatida no parágrafo anterior e ao longo de todo texto) não é
tão completa, pois convém igualmente a duas ordens de fatos que, embora
aparentados entre si, precisam ser distinguidos: aqui se trata da magia e da
religião.
A magia é também feita de
crenças e ritos. Nessa perspectiva, como a religião, a magia possui seus mitos
e dogmas; porém, esses são mais rudimentares porque a magia não perde seu tempo
com especulações. Ela possui de forma semelhante suas cerimônias e sacrifícios,
purificações, preces, encantos e danças. Os seres invocados pelo mágico, as
forças que emprega não são apenas de natureza igual que as forças e os seres
aos quais se dirige a religião; com bastante frequência, são exatamente os
mesmos. Portanto, desde as sociedades mais inferiores, as almas dos mortos são coisas
essencialmente sagradas e são objeto de ritos religiosos. Ao mesmo, no entanto,
elas desempenharam na magia um papel considerável. Se pensarmos na perspectiva
da magia, os demônios são um instrumento usual dessa ação mágica; eles são
cercados de proibições também; também são separados e vivem em um mundo à parte.
Nessa parte, o autor nos propõe uma reflexão: “Aliás, mesmo no cristianismo,
não é o diabo um deus decaído?” (DURKHEIM, 1996, p. 27)
Em um contexto de análise dos
gregos sobre o assunto da magia, o francês questiona se deveria então dizer que
a magia não podia ser distinguida com rigor da religião? Que a magia está
repleta de religião, da mesma forma que a religião está repleta de magia, e que
é impossível separá-las e definir uma sem a outra? Entretanto, certifica o pensador
que, o que torna essa tese dificilmente sustentável é a repugnância da religião
pela magia e, em contrapartida, a hostilidade da magia pela religião. Mas,
partindo de uma análise de Mauss e Hubert, Durkheim conclui que por mais que
haja uma relação entre religião e magia, é quase impossível que essas duas não
se oponham em algum ponto.
Ao longo do item, que é o menor,
Durkheim aborda sobre várias questões do embate religião e magia, demonstrando os
antagonismos de crenças nas duas, instituições etc. Mas já caminhando para o
fim do capítulo, o pensador francês, ao longo do debate das definições do que
se enquadra ou não da definição de religião, ou o que é a religião em si, o
pensador nos dá a seguinte definição sobre o que é a religião em sua concepção:”
uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas
sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa
mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem.”
(DURKHEIM, 1996, p. 32) Além disso, contudo, devemos ter a noção de que a ideia
de religião é ligada a ideia de igreja – essas duas noções não se separam – e isso
faz nós percebermos e concluirmos que a religião deve ser uma coisa
eminentemente coletiva. É desta maneira que o autor conclui o primeiro capítulo
de Formas Elementares da Vida Religiosa, uma das maiores obras das Ciências
Sociais.
Muito bom!
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